terça-feira, 22 de julho de 2014

o que eu vi hoje na bola de cristal

posso passar aí? primeiro reservamos horas. não falamos muito. eu tiro a sua roupa com cuidado. eu meço o seu corpo com a minha língua. quantas línguas minhas são necessárias pra traçar uma linha reta da sua testa até os seus pés? a minha saliva atropela a sua carne. eu engulo o seu gosto.

depois, ando sozinha no subsolo. eu sigo o barulho do reservatório de água. é um estacionamento. eu fecho os olhos e ainda assim sigo o barulho. será que algum carro vai me pegar? será que o reservatório vai explodir e eu serei atropelada por um tsunami? há também barulho de vácuo, barulho de assombração. abro os olhos, uma porta com buracos. há monstros do outro lado da porta. há monstros do outro lado de mim. a água explode daqui, ó: bem daqui.

mais uma vez, você mexe aqui, mexe com força como se fosse um tremelique. eu quero sentir aquilo. eu quero sentir desesperadamente. mordo você pra arrancar pedaço.

o que acontece se eu misturar todos esses remédios aqui? todos esses aqui?
vácuo. assombração.

enfim, a última cena. eu caminho na calçada e caio repentinamente. a cabeça dói, o ventre dói, tudo dói. a respiração não dá conta da quantidade de ar que eu preciso. a cabeça incha com diversas variantes dos mesmos pesadelos reais. sou lançada pelo vento no meio da rua.


espaço público, dor privada. 
meu corpo não escapa ao carro. 
meu corpo finalmente perde as carnes e as peles. 
as carnes e as peles por anos arrancadas.

slow motion, música melodramática.

o que eu vi:


estraçalhada.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

outros doze movimentos dentre tantos movimentos

1.
Hoje em dia não se compra um par de alianças por menos de mil dinheiros. Essa coleira de metal é um investimento do tamanho de alguns salários. Do tamanho de uma promessa de eternidade. Isso me faz pensar sobre o quanto as pessoas mudam imensamente em um curto período de tempo. Ou sobre o quanto as pessoas fingem que mudam. Ou sobre o quanto as pessoas nunca mudam: Você preso, eu livre. Você adulto, eu criança. Como sempre. Liberte-se. Envolva-me. 

2.
A melancolia é violenta, foi o que aprendi nesses meses sem você e naquelas noites com o homem triste. O homem triste preenchia cada pedaço vazio de sua vida com os meus gritos, o homem triste não se importava se os outros estavam olhando, o homem triste me comia com voyeur, o homem triste me comia sem voyeur, o homem triste me comia no chão e no teto, o homem triste me comia de frente e de costas, o homem triste me comia de todos os jeitos, mas me comia para machucar. Ele me invadia por dentro e me estapeava por fora. Ele me batia mais do que você, e eu gargalhava e gozava no meio da guerra. Na última noite nós dois choramos. Eu estava triste como ele é. Eu, triste com a minha vida, ele, triste com a vida dele. Estávamos ali sozinhos. Ele, desesperado para sufocar as lágrimas, enfiava tudo em mim enquanto me xingava. Eu abstraí e absorvi. Suavemente, peço que fique suave. Eu em transe. Sem mais beijos. Absorva meus sentidos.

3.
Eu não aceito roupa social para trabalhar, eu quero trabalhar pelada. Todos aqueles homens com seus pequenos poderes para cima de mim, todos eles tinham mais direitos que eu, e então eu respirei e nutri ódio. Eu quero cuspir nessa comida. Eu quero raspar os cabelos. Eu quero arrancar essa roupa. Rasgue minha camisa.

4.
Hoje eu fui você. Eu passei de carro em frente ao nosso ponto de encontro, e eu me vi sentada te esperando. Eu era um pouco mais nova e eu sentia muito frio. Eu usava saia xadrez e meia calça preta. Meus cabelos eram mais pretos. Meu casaco era mais preto. Foi assim que eu me vi, eu tremi no volante com a visão. Era eu na estação e era você no carro. Você no meu carro, dentro do meu corpo, com as mãos no meu volante. Você como um demônio me possuindo e eu como uma aparição, do lado de fora de mim. Eu tremo no volante e seus tormentos escapam pela janela. Eu sumo do lado de fora. Eu novamente sou eu, do lado de dentro. Agora em cacos. Cole os pedaços.

5.
Quando os beijos de carnaval resumem-se aos beijos, eu seco. Eu não tenho mais tempo para meninices. Eu sou uma mulher e preciso viver todo o meu sexo hoje. E amanhã preciso viver o sexo todo de novo. E depois de amanhã de novo. E de novo. A minha morbidez é tão somente desejo. Encharque-me. 

6.
Eu vi um ser humano virar uma máquina. Não foi uma visão sobrenatural, aconteceu de verdade, aconteceu diante dos meus olhos. Há alguns anos eu mostrei um seio para ele e ele atacou o seio com a boca, como fazem as crianças quando mamam. Ele desnudou o outro seio e navegou entre os seios com a boca, como fazem os adultos quando trepam. A barba quase ruiva dele era real, deixou pelos nos lençóis da cama. Hoje ele é uma imagem na tela do telefone celular. Como uma máquina defeituosa, ele liga e desliga quando ele quer. Como uma máquina sistemática, ele trepa comigo sem me tocar. Eu não sei ao certo como o sangue pulsa nele e isso esvazia o meu desejo. Não gozo com engrenagens. Primeiro retorne ao seu corpo, e só então retorne ao meu.

7.
Eu conheci um homem ainda mais velho que você. Ele fala com lábios acelerados, atropela as palavras, arranca os cabelos. Ele tem olhos vivos que pulam de um lado para o outro com uma contínua energia de vida nova. Quando a boca acelerada sorri, os olhos sorriem junto, e meus pés ficam amortecidos. Eu quero chegar perto dele. Eu quero que os olhos dele olhem através dos meus buracos e me vejam por dentro. Um dia desses, eu dei um abraço nele, ele me apertou com força e roçou a barba no meu pescoço. Eu estou viva e ele me deseja. Eu sou desejante. Não me ponha freios.

8.
Hoje eu revi aquele rapaz com cores instáveis nos olhos. Ele me subtraiu meia década, me afogou com o silêncio do seu jeito de mulher. Ele, tão mais feminino que eu, mordeu meu rosto, puxou meus cabelos, tirou-me do chão, deslizou comigo no chão, flutuou comigo sobre o chão, atravessou o salão escuro derretendo cada órgão do meu corpo, agitando meus sentidos com o ar que saía de sua boca, ele, aquele rapaz-mulher, pressionou-me contra a parede e me lambeu por dentro, e me tocou por tudo, e me largou tremendo. A minha morbidez é tão somente desejo. Entorpeça meu cérebro.

9.
Quando algum carro para onde você parava o carro, eu quero expulsá-lo a pedradas. Como alguém se atreve a acender faróis cheios de vida no cemitério? Hoje eu vi você morto. Eu esperneava de horror sobre o seu corpo, eu fazia escândalo, eu pedia que me matassem, que me levassem com você. Me leve com você.

10. 
Aquela mulher sorri e os cantos do olhar revelam bonitas rugas de expressão. Ela tem tanta ternura que poderia ser minha mãe. Ela tem tanto fogo que poderia ser minha amante. Eu quero ficar por perto para sugar a luz que sai de dentro dela, para emanar minha luz para dentro dela, para que nossas luzes se misturem e para que as luzes estejam iguais mesmo quando já estivermos muito distantes. Eu a vi pouquíssimas vezes, mas sei que é assim que eu quero ser. Um dia eu dei um beijo nela, foi breve, foi adocicado, e eu me perguntei se meu beijo era assim doce também. Eu quero que ela me ensine a ser doce. Eu quero que ela cuide de mim. Eu tenho curiosidade sobre todos os mistérios dela, porque eu quero reproduzi-los, porque eu quero tornar-me ela. Eu não tenho curiosidade sobre todos os mistérios dela, porque quero que ela viva os mistérios em paz, que seja ela e só ela sem sufoco. Eu não desejo destrui-la, eu desejo construir-me. Eu desejo que o sorriso dela revele mais belezas a cada dia. Eu desejo que nossas belezas compartilhem de mais proximidades. Eu desejo que os cantos do meu olhar revelem bonitas rugas de expressão com o meu sorriso. Sorria.

11.
O quarto sujo, caótico, desconhecido. Completamente alcoolizada, eu fui parar ali. Completamente alcoolizada, eu tirei nossas roupas. Ele, o estranho, completamente alcoolizado, entrou em mim e nunca mais parou de entrar. Dez minutos. Trinta minutos. Sessenta minutos. Cento e vinte minutos. De quantos gozos meus ele precisa para me dar o dele? Quantos dias são necessários para o fim? Eu em transe. Quando acabamos eu dormi por cinco segundos. Corri para a minha casa e passei o dia comigo na cama. O corpo morto e a boceta viva. Pulsando como se fosse explodir. Doendo como se ainda estivesse recebendo. Recebendo. Cento e oitenta minutos. Duzentos e quarenta minutos. Mil oitocentos e sessenta minutos de recuperação. Eu gosto de sentar no chão e deixar a pele bem geladinha, e gosto de secar o meu cabelo bem devagar com ar quente, até que ele fique macio. Sonolenta. Meu corpo sem forças volta ao quarto dele. Agora conhecido. Agora limpo. Minhas roupas, de repente limpas. Meus beijos, de repente tranquilos. Minhas forças, de repente fortes. Fizemos. E fizemos de novo em seguida. E ele ficava mais bonito a cada toque. E eu gozava com as mãos dele. E eu gozava com a boca dele. E eu gozava com o pau dele. Ele fez de mim uma guitarra para tocar. Os meus sons eram música. Ele agora era tão bonito que não era mais um homem: Era também um som de guitarra. Não uma guitarra tocando um solo, mas uma guitarra em meio a uma banda. Uma guitarra tocando com a minha guitarra e tocando com todos os outros instrumentos do mundo. Uma beleza dentre outras belezas. Um som que arrepia em meio a outras vivências. Teia de amores. Ele, todo som, vibrando em meus ossinhos. Eu, toda ossos, bonita no escuro e na luz também. Bonita voltando pra casa. Bonita o resto da semana. Bonita. A vida é música das boas. Quando passo a semana sangrando, quero que o sangue estanque para que continuemos a fazer nosso som. Eu, ele, e todo mundo que saiba tocar. Ouçam. Escute meu som.

12.
Você é meu começo e meu fim. Você preso, eu livre. Você adulto, eu criança. Inverta tudo e dá no mesmo. Você, criança livre, me construiu com as suas mãos. Desenhou meus seios altos e meu ventre baixo. Desenhou meus buracos estreitos e meus prazeres misturados ao choro. O que eu era antes de você? Um invólucro preenchido de metal pesado. Sem metamorfose, sem alquimia, sem espaço para outras substâncias. Pesos que não movem. Sem acesso tátil do meu corpo ao meu próprio corpo. Massa disforme. É mentira. Não era assim. Eu já vim moldada, mas não sabia. Você fingiu me moldar, mas só abriu meus olhos e órgãos. Me fez amante irremediável. Eu novamente sou eu do lado de dentro. Eu sou meu começo e meu fim. Quando nos beijamos pela última vez, eu pensei: "Desse jeito eu vou querer ir até o fim da vida". E agora eu quero. Antes que eu vá, escritor, me escreva uma carta. Antes que eu vá, me ame. Até o fim da vida. Até o fim das vísceras.

domingo, 19 de janeiro de 2014

perene

1.
ele tenta dar um beijo ela vira a cara
ele pergunta se ela não gosta de beijo
ela responde
gosto
ele tenta dar um beijo ela vira a cara
ele coloca as mãos dela sobre ele e dorme
ela solta as mãos e suga todo o ar do quarto
com a boca ela suga todo o ar
repõe o pulmão que esvaziou-se com a boca dele
se houvesse mais beijo a boca dele
sugaria não só o ar mas os pulmões
o cérebro
o coração
boca barulhenta sugadora de ares
de peles
de órgãos
de sentidos
ela repõe o ar e sente
que vive uma história de amor
ela sente
que pode morrer
e não dorme.

2.
quando ele a conheceu ela era
pequenininha
anã assim
dezessete aninhos
e cabelos negros que chegavam aos pés
gigantes
como os olhos
famintos
como os sexos
inchados
como os corações
gritantes
como os gritos de gozo
ela chora
no gozo e na despedida ela chora
com e sem ele
ela chora
come sem ele
ela incha
incha das fomes
incha das águas
gigante e careca ela é toda um sexo.

3.
ela suga o cigarro
chupa o cigarro
como antes chupava todo ele
respira a fumaça
engole a fumaça
como antes engolia todo ele
ela mata o cigarro
e pare o sol
grávida do sol ela escoa
a luz
tímida luz
luz assassina
é triste o amanhecer
o azul quase azul
o dia quase dia
os quases são tristes
eles quase correram um para o outro
depois de desligarem o telefone
após horas falando sobre o nada
tímidos assassinos
naquela noite eles quase correram
e agora é nada.